O rádio tocava Alceu Valença, e sua voz marcante preenchia o carro. Camila sonhava acordada, imaginando se alguém a achava a garota mais bela da tarde, mesmo sem nunca ter ido à praia de Boa Viagem. O suor escorregava em seu corpo salgado, lhe fazendo cócegas. Sua irmã olhava pela janela com a tristeza de quem ainda teria que fazer duas provas de recuperação. Ela não. Havia passado direto em todas as matérias. Suor, melancolia, alegria, areia e água salgada — tudo junto e misturado. Se tivesse que escolher uma cor para os dias de verão em Salvador, seria laranja.

Ela ainda não sabia, mas aquele dia seria tingido por outras cores.

Seu pai reduziu a marcha do Fiat 147 verde ao notar o amontoado de gente defronte o prédio. Ele tinha alergia a muvuca. Camila desceu num pulo, pouco antes do carro parar por completo. Ela empurrou a porta e correu sem nem bater os pés para tirar o resto da areia da praia de Piatã.

— A porta! — seu pai gritou, ela fingiu não ouvir.

Algumas pessoas murmuravam baixo, outras apenas seguravam o queixo com a mão, como se encarassem algo que não devia ser visto. A cena a fez lembrar-se de sua mãe, que sempre repetia: “Fofoca se espalha mais rápido do que fogo em mato seco”. O pequeno amontoado de curiosos parecia uma revoada de urubus ao redor da lona preta. A prova viva, ou morta, que o ditado não falhava.

Camila hesitou antes de atravessar o portão. O coração martelando. Perdeu o equilíbrio, sentiu uma tontura que a fez cambalear. Prenúncio de mais uma enxaqueca. Ajeitou a alça de seu biquíni amarelo e ergueu os olhos. As janelas do Edifício Marcelo tomadas de gente, formando uma arquibancada macabra. O espetáculo de horror à poucos passos.

A cada movimento, mais cochichos, mais olhares. Um nó apertou seu estômago, subindo pela garganta como um engasgo. Seus olhos ardiam. Um som abafado de choro cortava os sussurros. Vinham de uma mulher que ela não reconhecia. Não era moradora do prédio, mas seu rosto era familiar.

A lona preta era fina demais para esconder o que havia por baixo. O sangue se espalhava ao redor, espesso, escuro. Quem disse que sangue era vermelho? Misturado ao mato que brotava teimoso naquele jardim improvisado — um projeto mequetrefe de paisagismo, com losangos de concreto tentando imitar pisos caros —, o líquido assumia um tom ainda mais funesto.

A brisa que vinha da orla serpenteando os prédios e casas agitava a lateral da lona. Camila não queria olhar, mas era mais forte que ela. Deu mais um passo tímido, como se estivesse pedindo permissão sem abrir a boca, como um cão desconfiado diante de um estranho. Ninguém a impediu. Quanto estava perto o bastante para vigiar o sangue e evitar que ele encostasse em sua Melissa amarela, o vento assumiu o papel de mestre de cerimônias. A lona ergueu-se de uma vez, como numa peça de teatro que começa sem avisos.

A primeira parte que vi foi a sua perna. Estava torcida de um jeito estranho, como se fosse uma curupira. O joelho dobrado de um jeito antinatural. Acima das coxas, um short rosa, sujo. Um dos pés, rígido, teso, descalço. Onde estava o outro chinelo? Camila reconheceu a roupa, mas ela recusava-se a acreditar. Aguardava por algum equívoco, um erro fortuito da sua mente sonhadora.

Levou as mãos ao rosto, não queria acreditar e nem ver mais nada. Mas o vento, ardiloso, tinha outros planos. Determinado a torturar todos os curiosos, ele levantou a lona quase que por completo. Era ela, não havia mais dúvidas. O coração da garota congelou, fazendo seu sangue parar de circular em confirmação.

Um dos braços torado com uma fratura exposta que rasgou-lhe a pele, como se a menina do short rosa tivesse tentado, de última hora, se proteger do impacto. O que restava agora em sua frente era um corpo estraçalhado em uma posição impossível.

Gritos agudos, graves se espalharam num espanto coletivo. Já no playground, o pai de Camila chamou seu nome um par de vezes enquanto tampava os olhos de Patrícia. Ela era muito nova para tamanho brutalidade.

Uma náusea lhe subiu, quente, amarga. Nenhum outro adulto além do seu pai se importava com a sua presença. Todos estavam ocupados com seus próprios horrores internos.

Gambiarra surgiu com algumas pedras e as usou para fixar a lona sobre o corpo da garota, impedindo que o vento trouxesse mais uma rodada do show de horrores.

O pai de Camila beijou sua testa, como se aquele gesto pudesse a salvar dos pesadelos que viriam.

A menina que, minutos antes, retornava de uma tarde feliz da praia seguiu o pai e a irmã até o elevador. A fila de curiosos se acumulava defronte os elevadores, acompanhada de julgamentos sussurrados por figuras que se portavam como se soubessem o que havia acontecido. Camila tentava pescar as conversas, mas nada fazia sentido.

Ela conhecia a garota torcida no chão. Pouco, mas conhecia. Muito mais do que aqueles que praguejavam por sua vida.

E era isso o que mais lhe metia medo. Não o corpo disforme, espatifado no cimento, nem mesmo o sangue escuro e grosso grudado no mato.

O que lhe assustava era a certeza de que ela não havia caído sozinha.