André assoprava o cartucho de Alex Kidd In Miracle World certo que, dessa vez, seu Master System iria exibir o logo da SEGA. Foi quando ouviu aquele som. Não era o que ele esperava. Era um barulho seco, uma pancada surda contra o chão.

O som o arrancou para longe do videogame. Ainda com o cartucho ainda na mão, ele caminhou até a janela do seu quarto. Do sétimo andar, as pessoas pareciam pequenas, mas não tanto quanto no último andar do prédio, o vigésimo primeiro. Ele reconhecia algumas vozes que o vento arrastava para cima, carregadas de inquietação.

Com passos lentos, ele foi até a sala. Ouviu um grito abafado vindo de outro apartamento, atravessando camadas de paredes e portas. Ao chegar à janela da sala, entendeu o que as vozes alertaram. Primeiro, percebeu o contraste das cores: o rosa do short colado ao corpo, a camisa azul contra o cinza pálido do chão de cimento. Seu estômago revirou ao reconhecer que era o corpo de alguém.

André se debruçou com o peito encostado no mármore quente para enxergar melhor. Logo se lembrou do filme que assistiu escondido na casa de Igor "do 13", no mês passado: "O Exorcista". A figura estatelada no chão lembrava a garota contorcida que nem uma aranha bizarra, andando de quatro, ao contrário. Prendeu a respiração. As pernas estavam viradas de um jeito impossível, e os braços, tortos, como se o corpo houvesse esquecido a posição natural do corpo humano.

Gambiarra chegou rápido, jogando uma lona preta sobre o corpo. O peito de André comprimiu-se num aperto doído. Ele tentou desviar o olhar, mas algo o impedia.

— André, saia daí — A voz de sua mãe o trouxe de volta.

Ela apareceu na sala, os olhos arregalados, e o puxou pelo braço.

— Sai da janela, menino!

Ele nem discutiu, se afastou lentamente e apontou, sem abrir a boca. A mãe se aproximou e, ao olhar lá para baixo, cobriu a boca com as duas mãos.

— Mais uma, meu Deus. Mais uma que se joga.

André não respondeu. Aproveitou o descuido de sua mãe e olhou para cima. Das janelas dos andares mais altos, rostos curiosos espiavam, olhares reprovadores acompanhavam o desfecho. Como se morrer daquela forma fosse mais um pecado a ser comentado.

Assim que sua mãe se afastou, o garoto abriu a porta do apartamento com cuidado, evitando fazer barulho. O corredor estava mergulhado em um silêncio denso. Deu um passo, depois outro, e então ouviu.

Passos. Pesados, mas apressados.

Vinham das escadas.

André hesitou, segurando a porta entreaberta. Viu uma figura descendo os degraus com uma calma quase calculada.

Era um homem. A sombra dele deslizava pelos vãos da escada conforme piso ecoando baixo, mas firme. André não conseguiu ver o rosto, mas o andar tranquilo destoava da confusão lá fora. O menino ficou parado, o coração disparado, até que os passos desapareceram no andar de baixo.

De volta ao apartamento, André acompanhou sua mãe fechando a janela da sala com pressa. Ele olhou uma última vez para fora, e depois, para o vazio das escadas.

O menino ainda processava as frases desencontradas da sua mãe. Ela estava triste pela menina ter caído acidentalmente, ou nervosa por ela ter se jogado de lá de cima?

A mãe correu para o interfone, conversava com alguma comadre, aos berros,

— Você viu, menina?!

Aproveitando a distração, André correu para o quarto. Arrastou o baú de brinquedos até a janela e subiu nele para enxergar melhor o fuzuê no térreo. Ele tomava nota das pessoas que não estavam ali.

Eram essas que semeavam dúvidas. Como um grão de feijão embrulhado em algodão molhado, crescendo devagar.


Voltar ao Índice