A polícia apareceu já era noite, quase na hora do Jornal Nacional. Dona Carmen esperou o rabecão levar o corpo da garota antes de dar as caras. A mocinha trabalhava em sua casa há quatro anos. Como disseram que não havia mais ninguém na hora do ocorrido, o depoimento foi rápido e fácil de resolver. O fato de seu Freitas ser amigo pessoal do Delegado adiantou tudo, inclusive a perícia em seu apartamento realizada em menos de dez minutos.

— Suicídio, o legista vai apenas confirmar amanhã no Nina. Tem o número dos parentes dela? — Douglas, Major Douglas, estou muito abalada, pode ligar pra gente mesmo que a gente resolve com os familiares, viu? — Major Douglas apertou os lábios, olhou para Freitas que só balançou a cabeça. E então ele foi embora com os outros paus mandados.

Seu Firmino cuidou da limpeza e Gambiarra fez hora extra com gosto, mesmo sem receber nem um centavo a mais. No dia seguinte, todo o prédio já sabia de Vandinha, que se jogou do décimo sexto andar. Ela caiu sem querer, outros afirmavam, limpando a janela daquele jeito imprudente que ela gostava de fazer.

O local onde ela caiu, o grande losango de concreto, foi removido, deixando um espaço de barro vermelho à vista, como uma marca, um lugar que as crianças evitavam pisar para que o fantasma da menina não viesse puxar-lhes a perna durante à noite.

Dona Carmen sorria apenas com a boca, uma proeza difícil de se imitar. Os olhos profundos seguiam sempre impassíveis. Como dois radares atentos, dando nota de tudo, de todos. Das roupas que cada um usava, em quantos dias as repetiam, se estavam descalços ou com um chinelo com um prego atravessado na alça partida, de quem falava com a boca cheia, de quem falava pra dentro e até daqueles que não tomavam banho adequadamente.

No dia seguinte, nenhuma notícia sobre a queda no BATv, ainda assim o seu mundo virou de cabeça para baixo. Sem uma pessoa para limpar a sua casa, carregar as suas compras, sobraria tudo pra cima dela. Seus filhos foram passar uns tempos com os avós no interior e seu marido vivia fora de casa com seus negócios. E agora essa menina, que já não fazia as coisas direito, inventou de escorregar da varanda, era só o que lhe faltava.

Para piorar, teria que receber os parentes da garota, aquele povo foveiro do interior. Não ia deixar todo mundo entrar, só uma pessoa estava de bom tamanho, o resto que aguardasse lá embaixo. Quando ligou para avisar, foi um horror, aquele escarcéu, uma gritaria, uma choradeira desmedida. Ninguém foi capaz de agradecê-la por ter dado a oportunidade de criar a filha deles como se fosse da família em Salvador. Na Pituba, ainda por cima. Às vezes, até comia da mesma comida que ela, bebia a mesma água filtrada e, de uns dias pra cá, Carmen estava dando falta de uns doces, só podia ser a malandra morta-fome lhe roubando escondida.

O interfone tocou bem na hora do almoço e Carmen tinha plena consciência que isso já era planejado. Só que ela estava sempre um passo à frente e já havia combinado com o marido de comer fora, não ia dar essa ousadia para aqueles roceiros. Quando viu que era apenas a mãe dela e sua irmã mais nova, se acalmou um pouco, mas não deixou de continuar vigilante para que elas pegassem apenas os pertences da garota e sipicassem.

— Boa tarde, dona Carmen.
— Oi, bom dia né, ainda não almocei. — Dona Carmen respondeu, sorrindo só com a boca. Os olhos na menina. Era magricela, mas já era alta o suficiente para alcançar o armário da cozinha.
— Desculpe incomodar viu, dona, a gente veio só mesmo pegar as coisas dela, como foi que isso veio acontecer meu Deus? Eu nem quero ver a altura nem nada. — A senhora segurava um lenço, enxugando as lágrimas.
— Nem me fale viu, dona…
— Estela.
— Estela… Eu nem dormi, não preguei o olho esses dois dias, desde que, você sabe né, ela aprontou isso com a gente.

Estela hesitou, parou de caminhar em direção ao quarto dos fundos, respirou, e então seguiu. A menina continuava na cozinha, parada feito uma estátua.

Tudo o que Vanderleia Santos de Jesus possuía cabia numa mochila velha, pequena. Roupas antigas, doadas, um ou dois números a menos do tamanho o qual ela deveria usar. Um cotoco de batom, um pote de alfazema já no final e mais um par de bijuterias baratas e outros badulaques. Em meio a eles havia um bolo de cartas amarradas com um daqueles elásticos de dinheiro. Dentro de uma dos envelopes havia um maço grande de notas novas, em dinheiro. Era muito dinheiro.

O coração de Estela quase escapuliu pela boca junto com o líquido quente que subiu do seu estômago. Ela olhou para trás, mas Dona Carmen continuava encostada na pia da área de serviço, indiferente, impaciente, batendo o pé no chão defronte a porta do quartinho. A mãe de Vandinha fechou a mochila num golpe brusco e olhou para aquela metida miserável, lhe rogou uma praga sem que ela ouvisse e sorriu.

— Tem essa sacola ali também, ó. — Carmen apontou, com cara de nojo, para um saco plástico, grande, da Mesbla. — Ela deixou uma parte das coisas já arrumadas aí, dobradinhas, não sei o porquê disso. A gente até ia passar uns dias em Arembepe, mas ela não ia não que a gente precisava reformar o apartamento.
— Que Deus lhe abençoe viu dona Carmen? Já peguei as coisinhas da minha filha, que Deus a tenha, bom, agora é tentar seguir, não sei com que for…
— Bem, quem faz essas coisas né, dizem, dizem... eu nem acredito muito nessas ondas, que não vai pro céu quem faz isso não, viu? Você acredita nessas coisas? Tenho certeza que ela foi pra um lugar bom, era uma menina bem esforçada e trabalhadeira, viu. — Carmen tinha esse costume de interromper quem ela não fazia questão de ouvir.

Dona Estela mostrou os dentes, eram tortos, amarelos e faltava pelo menos um na parte de baixo. A senhora passou ao lado de Carmen se esforçando para não encostar nela, pegou no braço de sua outra filha e se dirigiu para a porta da cozinha.

— Mãe, tô com sede. — A menina falou.
— Quer água? Só um minuto. Quer também, dona?
— Estela. Não, obrigada.

Carmen pegou um copo pequeno, com restos de papel na frente, que até semana passada era de extrato de tomate. Ela abriu a geladeira e puxou uma garrafa de plástico antiga, a que enchia com água da torneira. A filtrada ela não gastava com qualquer visita.

— Aqui menina, como é seu nome?
— Silvalda, mas me chamam de Sil.
— Silvalda. Lindo, nome — mentiu. — Ei, dona Estela, já que sua outra filha me deixou desfalcada aqui né, será que Silzinha não gostaria de morar aqui comigo não? Ser minha filha postiça?

Estela puxou a filha para bem perto dela, sorriu para Dona Carmen e saiu sem nem abrir a boca.

Carmen achou uma falta de respeito, na cabeça dela, aquela velha só podia estar brôca de recusar uma proposta irrecusável como aquela que ela tinha feito. Será que era surda? Esse povo que não vai ao médico porque tem medo de descobrir doenças, ela tinha certeza como eram bem esse tipo de gente.

— Ela vai é estudar, muito obrigado mesmo assim, viu.
— Oxe, ela pode estudar aqui também, e as escolas daqui são bem melhores que as de lá de… de lá, é… do interior.

Dona Estela assentiu com a cabeça apenas para segurar a língua dentro da boca. Vendo que a velha não ia falar mais nada, completou:

— Bom, vocês que sabem, se mudarem de ideia já sabem o meu número. Mas não demorem muito, porque estou precisada e uma oportunidade dessas ninguém deixa escapar.

Que povinho, era só isso o que Carmen pensava enquanto acompanhava as duas indo embora. Antes de fechar a porta, algo lhe chamou a atenção.

— Hei, olha, o elevador de vocês é o outro. Esse aí é só para os moradores do prédio.

A menina deu um passo em direção às escadas, mas Estela a puxou pela cintura e mirou os olhos escuros nos de dona Carmen. Duas pequenas brasas prestes a incendiar.

— Esse aqui mais perto, e já deve chegano.