O som de passos interrompeu seus pensamentos distantes. Aqueles passos pesados, arrastados, que ressoavam pelo piso de madeira como batidas de um coração com arritmia. Vandinha parou por um momento, a mão na mesa da sala de estar, observando o corrimão da porta girar algumas vezes. Já estava na hora?

Ela olhou para o relógio da parede, mas o desgraçado finalmente havia parado. Sua respiração acelerou, a depender de quem estivesse ali, tudo ia dar errado, como ela havia sonhado na noite anterior, como as cartas de Jurema lhe alertaram. Não estava ainda no horário combinado, e tinham deixado isso bem certo, ela tinha quase certeza disso. Correu para o seu quarto, olhou o seu relógio jogado em uma das gavetas e estava certa, ainda tinha cinco minutos, suficiente para pegar as suas coisas.

Ela não sabia quem lhe assombrava mais, o tempo que acelerava, ou a curiosidade de saber quem estava na porta. Bom, teria que esperar. Conforme combinado, jogou algumas coisas suas numa sacola grande de plástico da Mesbla, para não chamar a atenção. Deixou para trás suas cartas, sua mochila e outras roupas velhas e apetrechos sem valor algum. Ficou com medo de correr com ela para sala e algum dos Freitas aparecerem, era difícil, mas podia acontecer, tudo podia acontecer.

Antes de abrir a porta, observou pelo olho mágico o corredor externo, mas estava tudo escuro e vazio. Deixou a porta livre, sem o pega ladrão, conforme combinado.

Ela ainda devia ter uns dois minutos, pelo menos. Tentava disfarçar o nervosismo, concentrando-se novamente no roteiro e em tudo o que tinha que fazer dali para frente quando ouviu da porta destrancando.

— Já está tudo pronto? — a voz veio baixa, mas firme, carregando uma familiaridade que fez seu estômago revirar um suco quente.

Ela não respondeu de imediato. Sentiu seu corpo tenso, esperou o arrepio arrefecer.

— Acho que sim, — disse por fim, sem se virar. — É… bom, só um minuto.

Os passos agora eram mansos, calculados. A pessoa parou colado a ela, perto o suficiente para que Vandinha pudesse sentir a sua presença. Aquele perfume barato misturado com cheiro de suor. Familiar, mas perturbador.

— Antes, pode fazer uma coisinha pra mim?

Vandinha hesitou, deu um passo em direção a cozinha, mas logo se arrependeu e aguardou ele continuar.

— Fica ali fora. Quero tirar uma foto sua. Daquele jeito que você faz. Pendurada, toda esticada. Você fica linda assim.

Ela tremia igual vara verde. Sabia que contrariar aquela pessoa poderia lhe custar muito caro. Sempre custava. Ela alisou a barriga, a mão tremendo levemente.

— Tá bom. — ela disse e caminhou até a borda da varanda, ela jogou uma das sandálias no chão, girou a perna com o pé nu para o lado de fora e ficou com o outro pé calçado a segurando por dentro. — Mas não demora, daqui a pouquinho eles chegam.

Ela subiu no parapeito frio, fazia isso quase todos os dias, mas daquela vez parecia mais difícil. O vento soprava forte, arrepiando sua pele. Ela segurou o suporte da janela com as duas mãos, inclinando o corpo para fora. Por um momento, ela sentia como se estivesse flutuando.

— Assim? — ela perguntou, sem olhar diretamente em seus olhos.

A câmera fez o som seco de um clique. Depois outro.

— Perfeito. — A voz tinha um tom doce, mas que fazia ela estremecer. Não de um jeito bom.

Os passos se aproximaram mais e mais, devagar, como quem não tem pressa. Ela não conseguia nem olhar a pessoa nos olhos. Sentia uma repulsa que lhe causou uma pequena ânsia de vômito e depois ela ouviu o som de algo sendo ajustado. Era um suspiro, dos grandes e pausados. Logo em seguida, uma última frase, dita tão baixo que quase se perdeu no vento:

— Me desculpa, princesa.

Foi rápido. O empurrão veio com uma força inesperada, quebrando seu ponto de equilíbrio no exato momento em que ela se preparava para descer dali.

Vandinha sentiu o vazio sob seus pés antes de entender o que estava acontecendo. O ar cortava sua pele enquanto seu corpo despencava, as janelas dos outros andares girando ao seu redor como estrelas caindo.

O mundo ficou mudo por um instante, antes do impacto. Seco. Final.