O apartamento 1604 diminuía à noite. O corredor que dava acesso aos quartos era silencioso como uma testemunha muda. A área de serviço soprava o vento da praia pelos cobogós deixando um ar fantasmagórico trespassar. Os móveis da sala inertes, observadores dos segredos que se arrastavam. O barulho da cortina batendo na janela não deixava Diego dormir, Daniel, na beliche em cima, não, esse seguia igual uma pedra.
Diego caminhava a noite pelo apartamento e percebia o quanto seu quarto era pequeno. Ainda mais agora que seu irmão caçula crescia. Já tinha sete anos e ele aos treze sentia que precisava se mover pela casa, ainda mais agora, que tudo ganhava um novo significado.
Ele andava de um lado para o outro, descalço, com a camiseta amarrotada e o olhar fixo na janela da varanda. A luz do Edifício Cláudio, à frente, e do Túlio ao lado, refletiam nos vidros criando sombras que dançavam nas paredes. Ele não conseguia dormir e sabia o porquê, só que preferia não admitir. Tinha medo dos seus pensamentos.
Sua família era uma companhia de Teatro e aquele apartamento o palco. Todos fingiam papéis durante o dia aos quais não queriam interpretar, mas precisavam. Seu pai, o chefe da casa, controlava tudo com uma mão firme e a outra num copo de whisky ou cachaça. Sua mãe, Carmen, tinha olhos aguçados e via demais, mas sua boca só andava fechada, nunca dizia nada, a não ser para Vandinha.
Ah, Vandinha. A pobre coitada passava o dia ouvindo reclamações de sua mãe. Ele achava um abuso, mas o que podia fazer? Ultimamente ele andava pensando em Vanderleia toda hora, principalmente em seus banhos mais demorados. Vanderleia, Vandinha.
Diego se jogou no sofá da sala, encarando o teto escuro. Não conseguia mais tirá-la da sua cabeça. A forma como ela andava pela casa, aqueles shorts que a desenhavam, o jeito que ela caminhava, silenciosa. Ela conseguia sumir quando precisava e quando menos esperava, ela aparecia, do nada. Às vezes, ele pensava que o segredo dela era esse, andar ao redor das sombras de sua família
Vandinha era forte, mesmo evitando conflitos, ria, mesmo estando triste ou doente. E o mais impressionante, ela sabia jogar o intrincado jogo das palavras que acontecia ali entre os adultos.
Diego observou isso algumas vezes. Em uma dessas, seu pai voltou para casa trocando as pernas de tão bêbado. Vanderleia estava na cozinha, lavando os pratos e panelas, quando ele entrou e ficou parado na porta, olhando-a como se ela fosse um móvel que ele pudesse arrastar para onde quisesse.
— Tá aí ainda, menina? — Freitas disse, a voz arrastada.
Ela ficou quieta. Continuou lavando a louça, as mãos ligeiras, o rosto virado para longe, mas ele notou o tremor em suas mãos quando ela colocou um prato no escorredor. Seu pai ria, uma risada safada, asquerosa.
— Tô falando contigo, Vanderleia. Tá surda, é?
— Tô ouvindo, sim, senhor. Já tô terminando aqui. — A resposta dela era controlada, mas dava para sentir o peso das palavras bem escolhidas.
Freitas deu um passo à frente, a garrafa de whisky pendendo na mão. Nesse dia, Diego estava naquele mesmo lugar, assistindo à cena sem saber o que fazer. Ele nunca agia ou falava algo, era incapaz de intervir, tinha medo de apanhar ou ser repreendido.
Vandinha virou-se para Luís, secou as mãos no avental, e o encarou com firmeza.
— Deseja alguma coisa, Seu Freitas?
Ele riu de novo, não respondeu com palavras. Ficou olhando para ela por um momento que pareceu longo demais, seus olhos desceram pelo corpo de Vanderleia e subiram, antes de dar meia-volta e sair. Diego viu o suspiro de alívio da garota quando ela pensou estar sozinha.
E aquela não foi a única vez que ele notou a forma como seu pai se comportava com ela. A relação entre os dois carregava uma tensão no ar e ele bem sabia que ele tinha um jeito particular de invadir os espaços, de transformar simples conversas ou interações em algo complicado ou sinistro. O que ele não sabia — ou não queria admitir — era como aquilo mexia com ele.
Aquele sentimento tinha um nome, um bem comum. Era ciúmes, mas não o tipo normal, ele tentava se enganar. Era algo maior, mais confuso. Ele odiava a maneira como seu pai olhava e tratava Vanderleia. Odiava como ele parecia achá-la disponível, descartável. Como se fosse uma coisa que ele pudesse pegar e usar quando quisesse.
E ele odiava também o jeito que Vandinha o evitava. Ela era educada, esperta, gentil, mas sempre mantinha uma distância segura dele. Diego achava isso o fim do mundo, encarava como uma barreira intransponível. Ele tentava se aproximar, fazia piadas, oferecia ajuda. A tratava com educação, ao contrário do seu pai, mas ela nunca lhe dava abertura.
Ele estava decidido, iria tentar mais uma vez. Levantou do sofá e foi até o filtro de barro, pegar água. A porta do quarto dela estava aberta, como não tinha janela, se quisesse algum conforto não podia trancar a porta.
— Sempre com sede de madrugada, não é, menino? — Ela disse, sentada na cama, o mirando de longe, com braços cruzados, como se já estivesse esperando por aquilo.
— Tu não deveria me tratar como uma criança, sabia? — ele disse, caminhando até a porta do quarto dela.
Ela estava com um pijama velho, um dos dois que ela tinha. Um branco com flores rosas. Por baixo, um lençol velho lhe cobria o resto do corpo. A garota, sem sutiã, puxou o lençol mais para cima, lhe cobrindo até o pescoço ao notar os olhos do menino passeando onde não havia sido convidado.
— E quem é que tá te tratando como criança aqui, Diego? — ela respondeu, olhando para a parede.
— Você, que sempre foge de mim.
Vandinha virou-se para ele, o rosto sério.
— Não estou fugindo. Nem tenho para onde fugir, menino. Só estou querendo dormir, e acho bom você fazer o mesmo.
— Posso dormir aí contigo?
— Ai, ai, feche a cara que não lhe dei essa ousadia. Diego, Diego…
— Só dormir, mesmo.
— Boa noite, até amanhã.
Diego ficou parado, vendo-a se deitar. A barreira entre eles era afinal por qual motivo? Ela só queria mesmo distância, ou tinha algo mais? Será que é porque ela sabia o que aconteceria se permitisse qualquer coisa diferente?
— Boa noite, Vandinha.
Ele caminhou até a sala, deitou no sofá e fechou os olhos tentando apagar as imagens que voltavam toda vez que ele pensava nela, mas era impossível. Aquele apartamento era muito pequeno, sempre cheio de gente, nunca eles conseguiam ficar sozinhos.
O som do relógio na parede preenchia o silêncio da madrugada. Ele andava atrasando as horas, como se as pilhas já estivessem próximas do fim. Diego sabia, no fundo, que ele não era o que ela queria, que ele nunca teria o que desejava.
Em seu quarto ele se enrolou em sua cama, seu irmãozinho continuava na mesma posição. Diego encarava a cortina balançando na janela.
Ela batia, batia, batia. Sem parar.