Não era apenas o zumbido das lâmpadas fluorescentes ou o barulho constante dos ventiladores decrépitos, o necrotério tinha um som particular. Era outra coisa. Um chiadinho irritante e invisível, mas palpável, como se o próprio prédio respirasse lentamente.

Cássio Monteiro conhecia bem aquele som. Podia ouví-lo até no mais absoluto silêncio, durantes as longas madrugadas que passava ali, com os corpos. Constantemente ele olhava o seu crachá, para se lembrar que era um Doutor, Dr. Monteiro, como o chamavam. Isso, claro, quando encontrava com alguém, já que o silêncio era o seu trabalho. E ele aprendeu isso com o tempo, aprendeu que a morte nunca chega quietinha. Ela sempre deixava um eco.

Puxou o formulário para ver quem seria sua próxima companhia. O nome dela era Vanderleia Santos de Jesus. Dezesseis anos.

— Puta que pariu, dezesseis! — Cássio falou em voz alta, como se houvesse mais alguém ali para lhe escutar

Ele releu tudo mais uma vez, embora não precisasse. Era um nome fácil de lembrar, igual a maioria dos que passavam por ali, mas algo naquela ficha parecia grudar nele que nem visgo de jaca.

Quando puxou o lençol, o corpo revelou sua história de forma brutal. Os mortos não falavam, ainda assim, diziam tudo sem cerimônias. O braço direito da garota estava torcido grotescamente, com uma fratura exposta que parecia cortar o ar. Suas pernas esticadas em ângulos impossíveis de serem reproduzidos em vida completava o retrato funesto.

Vanderleia não era mais uma mulher, mas sim uma boneca velha, dobrada e amassada, com todos os fios que a sustentavam rasgados e quebrados.

O legista deu dois passos para trás, respirando fundo. O que o mantinha de pé era seguir os procedimentos, a rotina. Vestiu as luvas, ajustou o jaleco e pegou o bisturi como se fosse um relógio que nunca podia parar.

O primeiro corte foi limpo, preciso. Ele expôs os órgãos internos abrindo a cavidade torácica como se puxasse o zíper de uma mochila. O coração estava intacto, assim como o pulmão esquerdo, mas o lado direito do tórax mostrava claros sinais de compressão. A causa mortis era óbvia, um impacto devastador, direto: queda de uma grande altura.

Apesar de astroso, o trabalho era simples. Só que todas as vezes que algo se mostrava simples demais em sua frente, ele sentia uma pulsão em seus tímpanos, como se fosse alguém lhe importunando, lhe avisando para prestar atenção. Era nesse momento que ele respirava fundo e falava com Zé Ivaldo, o esqueleto que ficava no canto da sala, dando nota de seu trabalho.

— Sim, eu já sei Zé… Nada é simples!

Ele anotou as observações no formulário de ousado, sabia que ainda era cedo, com Zé Ivaldo lhe martelando o juízo. Como? Por quê? Era sempre assim, aquela caveira infeliz lhe enchendo o saco, no que ele repetia.

— A ciência explica o "como", meu velho. O "porquê" é território de outro campo, do investigativo. E a gente o quê, Ivaldo, me diz?

Cássio se inclinou sobre o corpo, com o bisturi no ar, aguardando um instante e então completou.

— Isso mesmo, Zé. A gente não faz porra nenhuma, não somos pago para resolver mistérios…

Doutor Monteiro examinou os sinais mais sutis no corpo até encontrar um pequeno detalhe. O tecido uterino apresentava mudanças bem características. Ele voltou a segurar o bisturi no ar, deixando sua mente processar o que seus olhos já sabiam.

— Grávida! Essa menina estava grávida, Ivaldinho. Tem dias que são os mistérios que nos encontram, meu velho.

Ele deixou o bisturi na bandeja. A palavra "grávida" flutuava em sua mente enquanto encarava aquele corpo tétrico. Vanderleia Santos de Jesus estava grávida.

Dezesseis anos, grávida.

Ele puxou sua cadeira giratória e sentou-se, os braços apoiados na mesa fria. Do outro lado do necrotério, o zumbido das lâmpadas parecia mais alto. Cássio respirou fundo, fechou os olhos por um instante como a psicóloga havia lhe ensinado, mas porra, isso só piorava tudo. As imagens retornavam com mais força. Ele via até mesmo o corpo despencando, trazendo junto os segredos escondidos.

O envelope com o nome da menina ainda estava na gaveta de sua mesa, fora deixado ali na noite anterior. Ele não precisava abri-lo novamente para saber o que ele guardava, afinal, a mensagem nele era bastante direta: "Agradecemos o seu trabalho e discrição".

Não precisava ser nenhum gênio para entender o recado. O envelope era grosso, bem recheado. Mais pesado do que os últimos.

Cássio levantou da cadeira e voltou para a mesa. Pegou o formulário e escreveu, uma palavra de cada vez, no modo robô. Do jeitinho que Zé Ivaldo lhe ensinou, ainda que cada letra parecesse uma lâmina lhe cortando a consciência.

Não mentiu na causa mortis, só não revelou detalhes os quais aquele envelope queria abafar. E não seria ele que iria se opor a isso. Muito menos Ivaldo, aquele infeliz não tinha escrúpulos.