A sacola preta de plástico fazia um barulho irritante, arrastando pelo chão sujo do playground. O dia inteiro no salão tinha acabado com a paciência e os ombros de Marlene e, para piorar, ela ainda teria que subir os quatro andares de escada.
— Tá quebrado, Galega, os dois. — João Antônio, seu companheiro, telefonou para o salão para lhe dar a péssima notícia: apenas o elevador de serviço estava funcionando.
— Vou de escada mesmo, aquele elevador do lixo parece que foi batizado pelo satanás de asas, só faz me atrasar. — Ela disse. Os dois rindo no telefone.
No primeiro degrau, ela via a porta do elevador de serviço, mesmo assim ela repetia, para si mesma "Vou é de escada mesmo, quem vai subir nessa disgraça aí é o capeta". A sacola cheia de xuxas coloridas e tiaras que sobraram dos clientes batia em um degrau ou outro, enquanto ela gemia baixo subindo as escadas.
Marlene odiava seu apelido, apenas seu companheiro tinha permissão para usá-lo. Ele fazia lembrar-lhe do passado dolorido quando vendia picolé Capelinha na praia e as pessoas, sempre gritavam, "ô galega, tem de amendoins?", "ô galega, quede meu troco". Era tanto galega pra lá, galega pra cá, que um dia ela assumiu o apelido para ajudar nas vendas. Se permitia até usar umas roupas mais apertadas, o que a fizesse vender mais estava valendo. E apelido só pega assim quando a gente não gosta, como qualquer coisa em Salvador.
Agora ela vendia xuxas, tiaras, colares e outros badulaques no salão de uma prima para complementar a renda de casa. A vida de antes estava enterrada, mas o apelido sobreviveu. Ela só não queria deixar os vizinhos descobrirem porque coisas ruins grudam que nem areia de praia.
No bolso, a chave batia contra as nicas que ela guardava para comprar geladinho na mão da menina do primeiro andar. Já estava salivando com o gosto da manga docinha e gelada, mas quando bateu na porta, não tinha mais nada. Ou melhor, tinha, mas acabou. Aquele verão estava mesmo acabando com tudo, até com seus desejos. Marlene sorriu, depois suspirou fundo antes de seguir a sua procissão mais três andares acima.
Ela sabia que as meninas lhe aguardavam em casa e as xuxas que ela ia dar pras pequenas iam servir pra distrair um pouco aquelas pestinhas. As pequenas adoravam inventar moda com o cabelo. Ela puxou a chave do bolso, depois de se desvencilhar das moedas e abriu, dando de cara com a varanda escancarada, o marido com a barriga estufada de frente ao ventilador e as meninas rabiscando papel na sala. Só que o que lhe chamou atenção não estava em sua sala de estar.
De início Marlene pensou que fosse algum garoto pendurado em um parapeito fazendo graça, como já vira em algumas reportagens assustadoras na televisão. Ela se aproximou da varanda deixando a sacola no chão e a porta de casa sem trancar. Olhou para o Edifício da frente, o Marcelo, com a intenção de gritar, mas depois pensou que isso só iria piorar as coisas.
Uma moça estava lá, dependurada pelo lado de fora da janela de um dos últimos andares. Apoiava-se com as coxas enganchadas. O corpo todo balançava enquanto ela esfregava o vidro com força, limpando a janela como se a sua vida dependesse daquilo. Na realidade, ela limpava como se a sua vida não valesse de porra nenhuma.
Não era a primeira vez que Marlene presenciava aquela cena, mesmo assim, todas as vezes seu estômago revirava e ela se indignava mais do que Enéas falando dos seus planos atômicos para o Brasil no horário político.
— Essa menina é doida de pedra! — murmurou, com as mãos na cintura, e olhando para trás, procurando aprovação de João. Ela franzia a testa para enxergar melhor e a encarava na esperança que a menina a visse.
Galega cruzou os braços e ficou observando a garota que vestia um short rosa e usava um top preto, apertado, fazendo a lembrar da época que ela vendia picolé na praia.
— Tá vendo só João?
— Tô sim, é direto isso aí, e não é só ela não, viu. Não sei o que esse povo tem na cabeça.
— É só questão de tempo. Hum… Ói, eu não digo é nada… — Marlene batia os pés no chão, suas filhas ignoravam tudo, abrindo a sacola à procura das xuxas amarelas e as lilases — Mais cedo ou mais tarde, vai dar um passo em falso ali e despencar lá de cima. Anote aí! E aí depois vão querer culpar a patroa, o vento, o destino, sei lá mais o quê. Espie a merda.
— Galega, fiz um suquinho de manga pra você, tá na geladeira. A gente já comeu, tem um pouquinho de Mungunzá também, só esquentar.
Marlene entendia aquilo como o jeito carinhoso de seu marido dizer, "deixa isso pra lá, vai descansar". Ela beijou seu feioso na careca, e foi comer. Matou o desejo de manga e foi dormir naquele dia sonhando que estava caindo. Uma sensação triste. Quando era criança, sua avó dizia que era porque ela estava crescendo, e agora, era o quê?
Na semana seguinte, Marlene cortou caminho, voltou pela rua atrás do areal, rodeando por trás o Edifício Marcelo, antes de chegar ao seu prédio, o Túlio.
A porrada seca no chão, aquele vulto caindo do nada. Ela primeiro achou que fosse algum móvel ou sabe-se lá o quê. Quando se aproximou, o zelador cobria a menina. Aquela, a do short rosa.
O desespero que ela sentiu naquele instante se transformou em soluços e lágrimas incontroláveis. Não pela cena grotesca do corpo disforme e contorcido à sua frente, mas por se lembrar que ela tinha sonhado com aquilo. Que ela havia, de certa forma, praguejado aquilo tantas vezes, que acabou acontecendo.
Era culpa dela. Se ela tivesse avisado a menina antes, ao invés de só ficar maldizendo a pobre coitada da janela da sua casa, a garota ainda estaria viva.
A pobre coitada parecia ter a mesma idade que ela tinha quando vendia picolés na praia, e era isso o que a deixava ainda mais desesperada.