O elevador estancou de repente, com um solavanco que fez Bianca despertar. "Um dia essa disgraça cai", falou enquanto ele abria num gemido tétrico. Ela hesitou na passada quando viu que o número na porta não era o do seu andar ainda. Diego Freitas quase atravessou por dentro dela, entrando apressado, a testa brilhando de suor, com a mochila da Company novinha desleixada pendurada em um dos ombros. Ele parou por um instante, ia dizer algo, mas apenas balançou a cabeça.

— Eita, tá com pressa, é Diego? Fugindo da polícia? — Bianca provocou, com um sorriso safado, de quem queria deixar o menino sem jeito.

O garoto puxou os fones do Walkman e respondeu com um grunhido sem graça, do tipo que não convenceria nem uma criança.

— Oxe, não… Tô indo resolver umas coisas.

Bianca apertou os olhos, ela não era mais nenhuma garotinha. Já teve a idade dele e sabia que essa pressa repentina, de quem nunca precisou bater um prego em casa e no máximo só corria atrás de bola no fundo do prédio, era outra coisa. Uma que ela já vinha desconfiando há algum tempo. Aquela família era esquisita, viviam de aparências e achava que enganavam todos ali no prédio.

— Resolve com calma, então. — Ela disse, sem mais perguntas, apenas observando a forma como o garoto assentia com a cabeça, mas os olhos permaneciam presos ao seu busto exposto.

Os homens eram todos iguais, desde garotos, e era isso o que mais a enojava. Como uma criança daquela, que viu correr com meleca caindo no nariz, com roupa de ursinho, já estava ali, lhe comendo com os olhos.

— Eita, esqueci as chaves de casa no carro. Vou descer contigo — Bianca falou em voz alta, olhando direto para Diego que, sem graça, olhou para o chão até o elevador retornar ao térreo.

Os dois caminharam juntos, com o olhar atento de Gambiarra que respondeu o seu boa tarde de maneira protocolar. Ele respondia sem nem mexer a boca.

Ela conseguiu estacionar perto da entrada do prédio o seu Chevette marrom. Marrom cocô como gostava de falar para os amigos, sempre contava essa mesma piada e a cada dia se divertia como eles se esforçavam para rir dela, apenas por interesse.

Quando bateu a porta, Bianca viu Vandinha no passeio do prédio, chegando com duas sacolas cheias de produtos de limpeza e sabe-se lá mais o quê. O plástico numa luta árdua contra a gravidade, se distorcendo, quase rasgando. O peso era tanto que a garota ia revezando os braços e ainda assim, ela vinha sorrindo. Sorria como se o mundo fosse bom, como se a vida dela fosse uma maravilha.

Ela só parou de sorrir quando topou com Diego. Ela travou as pernas e mudou o semblante na hora, o olhando com desprezo. O garoto discutia com ela da mesma forma que Dona Carmen a repreendia por não saber limpar direito a casa.

Diego seguiu o caminho, olhou para trás, mirando a bunda de Vandinha, a menina, ainda revezando as sacolas de braço, praguejava sozinha, como se rogasse uma praga para aquele filhinho de papai. Bianca apressou o passo até o playground, puxou uma das sacolas de sua mão com muita relutância e a obrigou a subir por um dos elevadores sociais, o que parava nos andares de números pares. A pobre coitada ria sem graça, mas parecia aliviada, ainda que Gambiarra tenha balançado a cabeça para Bianca como quem advertisse alguém que estivesse andando sobre gelo fino.

— Tava rindo do quê, menina? Bianca, questionou, sem conter a risada que vinha acompanhada da pergunta.

— Ah, dona Bianca, a gente tem que rir, né? Se não já viu…

— Bianca, só. Já falei que não sou dona de nada.

— Tá bom, Dona.. Bianca! Bianca – Vandinha respondeu sem muita confiança.

A menina olhou Bianca com os olhos furtivos, a sacola balançando enquanto conversava com pressa:

— Dona Carmen pediu pra limpar tudo direitinho amanhã cedo, disse que vem umas visitas essa semana, importantes.

— Importantes é? Quem é assim?

Vandinha deu um sorriso vago, aquele que dizia "não posso falar mais nada" bem na hora que o elevador chegou. Ele estava vazio e Bianca percebeu a forma aliviada que a garota ficou por não ter ninguém mais ali.

— Ela me disse, Dona Carmen, que ela via lá de baixo a sujeira, as manchas. Que se amanhã quando ela chegasse as janelas estivessem sujas, que eu ia ver só.

— Porra, essa mulher tem olhos de águia né? Pra ver de tão longe. — Bianca respondeu, tentando rir para aliviar o ambiente.

Bianca devolveu a sacola enquanto segurava a porta do décimo sexto andar, deu um boa tarde para a garota e subiu até o vigésimo.

Quando chegou em casa e encontrou seus gatos chateados com ela, porque demorou para voltar, eles sempre faziam esse charme quando ela retornava, ficou pensando na vida daquela menina. Nem pra escola ela ia, não tinha tempo de nada, só tomava porrada de todos os lados daquela família metida a merda e ainda assim encontrava tempo para sorrir. Como é que ela iria poder reclamar da sua vida agora?

A água quente descia pelo seu corpo fazendo seus pés ficarem vermelhos. Bianca apertava os cabelos e olhava para o nada, a frase se repetindo na sua cabeça.

Que direito tinha ela, de reclamar da sua própria vida?