Vinte minutos antes de morrer, Vandinha parou defronte ao Condomínio Edifício Marcelo. Seus olhos fixos na janela do décimo sexto andar. Algo a intrigava, mas, ao contrário do que dona Carmem havia dito, era impossível ver, dali, se a janela estava suja ou limpa. Ela já desconfiava das mentiras da sua patroa, mas ainda não entendia qual motivo ela teria para tanto.

A menina que saiu de Sapeaçu com apenas doze anos cruzou o playground vazio com esse pensamento martelando-lhe os miolos. O cheiro de cera das paredes desgastadas a acompanhou até chegar às escadas escondidas no fundo do prédio. Vandinha entrou no elevador de serviço e ele rangeu igual um bode velho, subindo sem pressa. O cheiro de chorume, acumulado ao longo dos anos de carregamento de lixo e limpezas mal feitas, ardia suas narinas. Não adiantava tampar o nariz; as limpezas constantes não davam conta, o odor estava impregnado nas paredes e o chão fofo era consequência do caldo fétido espalhado pelas cargas de lixo.

Cada andar trazia um novo barulho: o choro estridente de uma criança, o som abafado de uma televisão ligada no último volume, passos apressados nas escadas. No décimo sexto andar, quem a aguardava era o silêncio. Girou a chave apenas uma vez — a porta do apartamento nunca era trancada. Lá dentro, uma tranquilidade rara: Daniel e Diego na escola, Carmen e Freitas no mercado. Tudo estava perfeito, como havia imaginado.

O interior do apartamento 1604 parecia suspenso no tempo. O cheiro dos produtos de limpeza baratos que seus patrões compravam, numa mesquinharia de fazer inveja a qualquer muquirana, persistia como um alerta. Algo estava fora do lugar. Uma das cadeiras na sala desalinhada. A toalha da mesa tinha uma dobra imperfeita, amassada. O relógio de parede… parado. Vandinha congelou por um instante, tentando captar o que estava fora de linha. O que havia feito de errado ou, talvez, certo demais a ponto de levantar suspeitas exacerbadas? Não era isso o que ela queria.

Respirou fundo, os olhos passeando pela sala sem pressa. Deixou a carteira na mesa, mas hesitou antes de avançar. Cada detalhe era um sinal, um aviso mudo de que algo erro a espreitava. Todos os pormenores lhe comendo pelas beiradas, coisas pequenas, rápidas de arrumar, mas quando juntas, formavam algo maior. Uma perturbação. Vandinha alisou a toalha da mesa com a mão, procurando algum sinal.

A janela da varanda estava escancarada. Um sopro quente circulava na sala, deixando o ar mais pesado. Ela sentia o calor grudando no corpo, quando aproximou-se da varanda com passos mansos. O vento balançava seus cabelos, e aquilo a lembrou de dona Carmen, rindo dela quando disse que limpar as janelas daquele jeito que sua patroa exigia era perigoso.

Você é jovem e ágil! Quem mais vai fazer isso com tanto capricho quanto você, minha filha? — aquele riso falso lhe dava dor de cabeça

Com as mãos na balaustrada, ela olhou para baixo, para a área frontal do prédio. Ninguém, vazio. Olhou depois para as pessoas e os carros coloridos. Nenhuma delas eram os meninos voltando da escola ou aquele maldito fusca azul. Ela esticou o pescoço um pouco pro lado, tentando seguir o horizonte. Quando apertava bem os olhos, dava para ver o mar. Salvador era mesmo muito grande como as pessoas de Sapé lhe disseram — imensa, um sem fim de casas, prédios, carros, fumaça e gente. Muita gente.

Uma tontura breve a fez recuar. De uns dias para cá, ela estava se sentindo mais calorenta que o habitual , com enjoos repentinos e falta de apetite. Alisou a barriga, um gesto pequeno, mas que a fez morder os lábios. Tinha que tomar muito cuidado de agora em diante.

Algo atrás dela rangeu. Vandinha virou-se num susto, mas era apenas a porta sendo puxada pelo vento. A inquietação aumentou. Não era apenas o apartamento que parecia errado; tudo parecia fora de ordem, como se o tempo estivesse prestes a parar.

Foi aí que ela ouviu os passos pesados no chão de taco.


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