De extraordinária aquela espelunca não tinha porra de nada. Era só um prédio antigo, recauchutado com tinta fosca por baixo de uma demão armengada. O recepcionista segurava as pálpebras dos olhos num esforço que enrugava seu rosto. Aquele cara de fuinha forçava um sorriso mais falso que o extraordinário que precedia a fachada do estabelecimento. A chave do quarto 71 foi jogada com indiferença. Memorizei a direção que ele gesticulou de forma vaga e segui até o corredor que levava aos quartos do andar térreo. Os mais baratos. Ele sequer ofereceu ajuda com minha mochila, o que me privou de recusar sua gentileza. Um dos meus esportes favoritos.
A decoração daquele fim de mundo era um eco rouco de tempos melhores. Móveis gastos e plantas que não sabiam o que era água ou luz do sol. Quando será que a gente para de tomar decisões ruins? Nos filmes, sempre chega um momento no qual a pessoa, por mais tapada que seja, aprende algo. Comigo não, a minha habilidade de não aprender era inata.
Cada passo cobrava um preço alto, como se estivesse à bordo de uma escuna velha com uma banda fuleira tocando por toda a viagem para, no final, ainda lhe cobrarem o show. O desequilíbrio e aquele bumbo que latejava dentro da minha cabeça só podia ser presente do Cravinho. Todo mundo se contenta em experimentar uma dose ou duas, mas eu não. Laura Melo, a sabichona da porra toda não ia ser otária. Porque pagaria o valor de duas doses quando se podia comprar uma garrafinha de 500ml pelo mesmo preço? Aplausos Laura, amanhã você precisará acordar cedo e vai ser com uma ressaca da disgraça. Gênia.
Minha visão nublada fazia tudo parecer um sonho arredio, daqueles que acreditamos poder despertar quando a gente quiser. Sabe quando temos a consciência de estar dentro de um sonho e alopramos geral? A sensação era igual.
Meu rosto refletiu na placa de bronze com o número do quarto. Prognóstico: Gata pra caralho. Mesmo com aquela cara de gambá e a maquiagem escorrendo pela cara, eu ainda era a porra de um espetáculo. Ou isso, ou era o efeito do cravinho. Fiz um jogo demorado de acertar o buraquinho com a chave até encaixá-la na fechadura. Apertei meus dedos até ficarem vermelhos para destrancar o inferno. Empurrei a porta com esforço, como se houvesse algo segurando ela por dentro.
Bati a porta com as costas. A alça de meu top lilás caiu do meu ombro, um fio puxou. Do lado de dentro, arranhões cobriam a porta. Alguém teve uma noite quente por aqui. Gargalhei, tapando a boca como se alguma vivalma fosse pedir silêncio a qualquer instante.
Ao contrário do "Extraordinário Hotel", o quarto 71 era decente. Cheirava a alfazema e tinha uma cama grandona com travesseiros gordos. A decoração, no entanto, era peculiar. Mais indicada para arranhadores de portas. Numa prateleira acima do cantinho para trabalho remoto, onde arremessei minha mochila, havia um conjunto de bonecas esquisitas. Todas com os rostos cobertos pelos cabelos. Uma corrente gelada eriçou os pelos dos meus braços pouco antes das luzes se apagarem. Gemi baixinho, e não foi de prazer como havia planejado. Aceitar o convite da proposta comercial em minha terra natal unia o útil ao agradável. Cheguei com antecedência de um dia para relembrar os velhos tempos. Negócios ou prazer? Eu sempre escolhia ambos.
Tateei pela parede, as mãos trêmulas. Quando acendi a luz, senti um jorro de água quente despelando meu corpo nu. Gritei. Em momentos como aquele eu me teletransportava para os lugares. Eu já estava no chuveiro sem lembrar por completo como havia chegado ali. Urina e sangue desceram pelo ralo. Mais um mês que estava salva de problemas maiores. Uma preocupação a menos para o dia seguinte, quando iria me encontrar com o tal contato misterioso que me encheu o saco dizendo que a cidade andava perigosa demais. Não siga ninguém, não saia do seu quarto. Parecia a minha mãe falando.
Ri quando cheguei na cama, flutuando. Eu já tinha me ligado. Estava dentro daqueles sonhos lúcidos. Não podia ser o cravinho, álcool não deixa ninguém assim. Talvez fosse o brisadeiro que havia comprado de uma mulher simpática no Rio Vermelho. Só me restava aproveitar a viagem. Fechei os olhos, a cama girou e tive que me segurar na cabeceira. Já era tarde. Quanto tempo ainda teria de sono? O celular estava na mochila. Um suco quente dentro do meu estômago pedia passagem. Respirei fundo, me sentei e olhei com calma até encontrar um rádio relógio. Só mesmo naquela pocilga de hotel, tão extraordinário quanto os corredores subterrâneos do Mercado Modelo, para ainda existir uma miséra daquelas. E o pior, ele marcava 00:71.
Meia noite e setenta e um? Mais perdido que turista na corda do Chiclete tomando sopapo e baculejo de tudo quanto é lado.
Não tinha janela naquele quarto lenhado, havia apenas um basculante no canto oposto à porta. De lá descia um ar quente e abafado. Uma luz não natural irradiava formando um cone de poeira. A certeza de estar num sonho só foi confirmada quando ela apareceu. E digo isso porque ela apareceu do nada. Mexendo nas minhas coisas. Só podia mesmo ser uma daquelas bad trips e tudo o que precisava fazer era tomar as rédeas daquela viagem.
— Quem lhe deu ousadia, hein? — Perguntei para a mulher.
Ela tinha cabelos longos, pretos e escorridos. Ela ria na minha cara, era como se alguém tivesse aberto uma boca de lobo. Acompanhei as suas tranças arrastando pelo chão, molhando a porra toda. Quem iria enxugar aquela merda era o coelho, não eu.
Saí só de calcinha, deixando a porta aberta, porque era um sonho, se fosse no mundo real, eu jamais seria otária de segui-la. Passei o olho pelo corredor antes de sair picada segurando meus seios que não eram grandes, mas eram lindos pra caralho. Não ia deixar nenhum sortudo zé ruela vê-los assim, de graça.
Um rastro de lama marcava uma trilha imunda do corredor até um quarto mais à frente. Tirando o meu, era o único com a porta aberta. Saí na ponta dos pés desviando de toda imundície. Eu pulava de um lado para o outro feito a porra de uma criança descalça na areia quente da praia. O número na porta também era 0071, ou seja, claramente um devaneio quimérico. Assim que eu acordasse, teria de anotar tudo antes de esquecer. Aquilo me renderia conversa para pelo menos duas sessões de terapia.
O quarto era igual ao meu, até minha mochila estava lá, arreganhada, com minhas coisas espalhadas pela mesa. Minha caderneta de anotações aberta numa página onde estava escrito, com minha caligrafia horrorosa, tudo o que havia acontecido até aquele exato momento. Só tinha uma coisa diferente naquela projeção alucinógena do meu quarto. No canto onde era pra estar o basculante havia uma janela enorme, aberta. Um vento assobiava e chamava as cortinas vagabundas e transparentes para dançar. A parede toda suja com marcas de mãos e pés.
Pulei pra fora sem dificuldade. Não enxergava nada para além de um palmo. Só estava tranquila porque sabia que era um sonho, se fosse de verdade eu já teria partido a mil. Tudo fruto da minha imaginação, um devaneio febril que nos assusta com o intuito de alertar para algo à nossa espreita. Aquela força invisível que espreme nosso coração e chupa todo ar de dentro da gente.
Quando me acostumei à baixa luminosidade, olhei para cima. Uma lua vermelha crescia num céu sem estrelas. Eu não sabia mais onde estava a janela. Fechei os olhos com força, tentando acabar com aquela palhaçada de delírio maldito.
Um sopro fedido ardeu no meu cangote e me fez me mijar todinha, a calcinha molhada me ardendo as coxas. Meus mamilos doíam de frio e só pararam de incomodar quando senti aquelas unhas ardidas me furando o ombro. Desceu cortando o braço inteiro, rangendo feito faca afiada em madeira velha.
Eu sabia — dentro de mim — que não devia virar a cabeça para trás. Se visse o seu rosto, fudeu Maria Preá, já era. Seria o meu fim.
Já havia passado da hora de acordar daquele sonho tardio, que espera até bem cedinho, dois minutos antes do despertador tocar. Não tinha como toda aquela disgrama não ser apenas uma alucinação sombria, uma fantasia distorcida.
Eu só não entendia porque doía tanto a minha carne se dilacerando até os ossos. 💀