Shekaar dominava as artes ocultas da magia com a mesma maestria dos maiores conjuradores de Elkenor. Não era de nenhuma das cinco famílias mais importantes do reino, não tinha herdado nenhum item mágico ancestral e tampouco frequentou as escolas arcanas. Ele era um excelente feiticeiro apenas porque, um dia, aceitando o conselho de seu falecido pai Shidraar, o Barão das Minas Baki, decidiu ser.

A sua fama se espalhava para além mar e, com isso, inúmeras pessoas – e criaturas também – faziam fila para conhecer o lendário conjurador de Elkenor. Aventureiros, curiosos, guildas inteiras e até mesmo integrantes das escórias mais perigosas das Ilhas Sem Luz brotavam todos os dias para ver se ele era tudo aquilo que diziam mesmo.

Os que ousavam o desafiar eram aniquilados e, um a um, empilhados em grandes fogueiras para serem cremados ao amanhecer. A população das redondezas do Castelo da Aurora já estava acostumada a acordar com o cheiro de morte e as ruas pintadas de vermelho. As noites do reino eram iluminadas por clarões de todas as cores. Algumas vezes, Shekaar apenas exibia-se para os seus fãs, tantas outras ele fazia churrasco de Boggarts ou Acromântulas.

Mais de noventa ciclos foram completos desde o seu nascimento até o dia em que ele conheceu o seu grande nêmesis. O maior algoz que o campeão de Elkenor já enfrentou chegou numa noite fria num dia ordinário qualquer. O vento agitava todas as árvores e fazia as toalhas das mesas dançarem no salão enquanto serviçais corriam de um lado para outro lutando para manterem as velas acesas. Thadéll não era alto nem baixo, não tinha uma longa barba, não era forte e nem empunhava um cajado imponente com alguma gema preciosa. Dava para contar nos dedos da mão de um Goblin quantas magias ele "sabia" conjurar. E era isso o que mais irritava Shekaar. O campeão de Elkenor que já havia conjurado entidades demoníacas de todos os círculos do inferno, que detinha o recorde de maior bola de fogo lançada em um dia de domingo, que já torrara em chamas multicores mais da metade de toda Elkenor e demais reinos adjacentes e além mar em suas fogueiras matinais era capaz de enfrentar qualquer coisa, menos Thadéll e suas piadas de gosto duvidoso.

Antes do seu inimigo pensar, outra vez, em perguntar se a sobremesa que tinham acabado de servir era pavê ou pacumê, antes mesmo de ouvir aquela boca imunda fazer comentários inapropriados sobre a aparência física da sua amada mãe e, mais importante, antes de maldizer a pessoa com a qual ele havia escolhido passar o resto da vida, Shekaar deu sua última cartada e conjurou a mais temida arte arcana do domo celestial.

“Calatiboca!”, Shekaar trovejou com ambos os braços apontados para a colina sagrada de Yester.

Um arrepio coletivo tomou conta do Pátio da Luz num silêncio nunca antes presenciado (ali). Maior até mesmo do que aquele que ocorreu no dia em que o Duque de Conta-Pedras deu sua opinião sincera – a última – sobre o novo logotipo do Reino. Aquele era um feitiço proibido até mesmo para um conjurador como Shekaar. O espanto coletivo, a quantidade de olhos esbugalhados e mãos trêmulas não era um exagero, a verdade é que o grande conjurador de Elkenor chegara ao seu limite.

Thadéll, pela primeira vez na vida, ficou sem voz. Com passos lentos e um olhar distante e vazio, ele se aproximou de Shekaar como um cachorro sem raça definida após ser pego no flagra urinando no lugar errado. A ventania cortante deu lugar a uma brisa que descia da colina para lamber a nuca de todos no grande pátio. Os que passaram a noite tentando manter as velas acesas, enfim, sentaram-se para descansar enquanto Shekaar deleitava-se ao ver seu grande inimigo agachar-se diante de seus pés. Dava para sentir a respiração quente daquele trapo humano. Era mesmo humano?

O gosto da vitória iminente e quase palpável desvendou um sorriso que muitos ali nunca tiveram a oportunidade de presenciar. Boa parte do público sequer sabia que dentes podiam ser tão alvos e alinhados como aqueles.

O arcano olhou para baixo com desprezo, mas antes de ordenar que seus vassalos levassem aquele sujismundo para onde seus olhos não pudessem mais vê-lo, Thadéll deitou-se com as costas no chão e levantou as pernas para o ar.

"Ohhh", um coro misto de curiosidade e surpresa fez pano de fundo para a cena esdrúxula que ali se desenhava.

Para a infelicidade de Shekaar, e dos demais que estavam próximos, Thadéll usava trapos imundos e furados como roupas de baixo. Deitado no chão e sem poder sequer mover os lábios, como um Tritão longe do mar e indefeso, num movimento que se assemelhava a um pedido de clemência, o maltrapilho preparou o seu golpe final.

Thadéll esticou as duas pernas no ar e, com os braços finos apoiados no chão frio, iniciou uma sequência de acrobacias que formavam no ar o número oito.

Um bardo surgiu de algum lugar no fundo da multidão, como um Ímpio trazido de um pentagrama riscado no chão em noite de lua crescente. Sua mão esquerda ficou tesa acima dos quatro pares de cordas por um ínfimo tempo que pareceu demorar um ciclo inteiro. Num gesto veloz ele dedilhou freneticamente seu bandolim, o rosto impávido vinha logo atrás do seu queixo pontiagudo. Uma onda elétrica – ou um feitiço nunca antes visto – serpenteava o salão fazendo a maioria dos ali presentes perderem o controle de seus corpos. Pura magia.

“Não se entreguem!”, Gritou, em vão, Shekaar.

Todos que passaram a vida acompanhando as vitórias do grande conjurador de Elkenor estavam, um a um, perdendo o controle dos seus movimentos. À medida que o bardo ia caminhando para o centro do embate, mais pessoas se transformavam em marionetes de um mestre titeiro macabro e oculto.

Enfeitiçados pelo ritmo incomum da dança que brotava daquela bruxaria, alguns ainda à contragosto e tantos outros sentindo uma enorme sensação de prazer e alívio, deitavam-se no chão sujo. Todos de costas no chão. As marionetes humanas levantavam suas pernas no ar, uma de cada vez, e imitavam os movimentos que Thadéll continuava a executar de maneira furiosa enquanto o trovador – que já havia subido na mesa central do pátio chutando uma vela no ar – cantava em voz alta:

“Faz o quadradinho de oito, faz o quadradinho de oito...”. Repetidamente.

Além do bandoleiro chutador de velas, Shekaar era o único de pé no pátio naquela batalha que ficou conhecida como A Noite das Maravilhas. A noite que marcou o fim de seu reinado.

Para a sorte de todos os outros habitantes do reino, Elkenor nunca mais foi a mesma.