A jaqueta de couro não combinava com aquela lataria. Estava no corpo errado. Giovana notou assim que bateu o olho no rapaz. Como estava sozinha, apenas riu, o observando de soslaio, girando a taça do seu último Martini entre os dedos. A bebida se movia em ondas suaves, a azeitona guardava para o final — ainda que desejasse algum drink com uma cereja. De azedume e sal, sua vida já estava abarrotada.

A cozinha já havia encerrado o serviço e a forma como o barman guardava os copos indicava que já havia passado da hora dela ir embora. Deveria ter pedido um Manhattan, ou algo mais forte. Ela poderia montar aquele sorriso falso e pedir qualquer outra disgraça mais forte.

Ela riu. De novo. Para seu azar, bem na hora que seus olhos bateram com o malamanhado de jaqueta.

Em vez de se encolher em seu próprio canto, como um otário normal faria, o abestalhado entendeu aquilo como um convite. Levantou-se, não era alto, ajeitou o couro nos ombros e sentou-se colado nela.

— Oi, qual seu nome?
— Giovana, e o seu?
— Marcus Rabelo. Vem sempre aqui?
— Nem sempre. Às vezes.
— Faz o que da vida?
— É entrevista, é? — Ela perguntou, com a mão no queixo.

Não tinha a mínima paciência para homens reporter e aquela jaqueta linda, não tinha mesmo nada a ver com ele.

Marcus exibia um grande “X” nas costas de sua mão. Giovana apontou e perguntou se ele era fã de Malcolm X. Disse brincando, mas o rapaz pareceu não ter levado na esportiva e retrucou falando que era de um movimento que Giovana não conseguiu entender — e nem queria — por conta de todo barulho daquele muquifo de lugar.

Não valia a pena ir adiante com aquele papo, muito menos com o tal do Rabelo. Que idiota se apresenta com o sobrenome? Quem é o pau no cu que risca um “X” grandão nas costas da mão por conta de algum movimento estúpido naquela idade? O menino parecia um projeto de Supla mal resolvido. Devia ainda morar com os pais e se orgulhar por pagar a conta da internet.

Giovana virou o último gole, pegou o palitinho com a azeitona e respondeu apenas um “legal” antes de se levantar. Ela assentiu com a cabeça para seja lá qual merda o prosa ruim falava. Por que ele ainda falava? Fingia entusiasmo enquanto ajeitava o banco e o Zé Matraca não parava de hablar, uma metralhadora de merda. Se despediu do barman soltando um beijo no ar. Acenou para Marcus e deixou a mão do idiota na saudade, fingindo não ter visto.

O aplicativo de transporte indicou três minutos de espera. Os três minutos viraram oito. Quando os oito minutos se passaram, vieram as mensagens de cancelamento. Uma após a outra.

Sem nenhum táxi por perto, ela procurou o ponto de ônibus mais próximo. Pegar um busu naquele horário era menos seguro do que transar sem camisinha no carnaval, mas Giovana estava ficando com poucas alternativas. Porém, ao se virar, a jaqueta de couro passou ao seu lado, vestindo um otário.

— O metrô está em greve e não tem mais ônibus a essa hora. Posso te dar uma carona pra casa.

Marcus carregava a chave com o símbolo da Audi pendurado em sua cintura, igual um pavão que abre o rabo cheio de penas para a fêmea lhe notar. Quem disse que não tinha mais ônibus? Ele nem devia saber de que lado se entrava em um.

Giovana levou a mão na boca, segurava uma risada surpresa. Ela estava pouco se fudendo se ele tinha um carro caro, mas, com poucas opções, resolveu fazer o mais lógico naquele momento: Virou-se e caminhou para a direção contrária. Mesmo que já fosse tarde e que sua casa ficasse a mais de meia hora de distância, pegar carona com um estranho não era nada inteligente.

Apertou o passo depois da primeira quadra, mas logo que virou a esquina um Audi prata freou ao seu lado. O vidro do carona desceu e, sem surpresa, o rosto redondo de Marcus Rabelo brotou acompanhado de um sorriso brochante.

— Oxe, deixa de besteira mulher. Poder ir no banco de trás se quiser, se não se sentir segura. É só uma carona. Juro. Tenha medo, não.

Marcus parou um instante, aguardando que Giovana respondesse. A garota colocou um dedo na boca, olhou pra cima. Um sinal de “quase lá”. Então ele continuou:

— E tem mais, como um straight-edge eu não bebo, não uso drogas ou nenhum outro tipo de entorpecente, lembra do que conversamos? — Completou, dessa vez com um sorriso genuíno que, por um nanossegundo, o tornava menos irritante.
— Tá bom, mas se ligue. Estou armada, tenho um canivete e vou usar se precisar, viu? — Advertiu Giovana.

Abriu a porta da frente e se acomodou ao seu lado, o conforto do banco de couro, o ar condicionado no talo. Pensou em como a vida era cheia dos seus mistérios, cheia de promessas criadas para serem quebradas logo em seguida.

Quinta-feira era o dia internacional do zig em Salvador. Não que ela tivesse alguém para dar um perdido. Decidiu tomar umas para esfriar a cabeça após as péssimas notícias do trabalho. Um Martini virou dois, três e lá estava ela, um par de horas após o expediente — extra —, sentada num Audi com aquele cheiro artificial de lavanda lhe agredindo o nariz, escutando grunhidos incompreensíveis no som do carro, dividindo espaço com um palerma de um movimento boboca, que optara viver sem beber nem se drogar. Até os crentes eram menos inocentes.

— Você não sente falta? — indagou Giovana após tomar a liberdade de abaixar o volume da gritaria no rádio.
— De andar de ônibus? Só peguei uma vez pra ver como era. — Ele respondeu, com uma risada.
— Beber me relaxa. Não sei como suportaria a minha vida sem tomar uns goró.

A cidade estava vazia, feriadão levava as pessoas embora pro interior. Giovana refletiu no que disse, parecia uma alcoólatra. Ela era. Foda-se, riu enquanto jogava a azeitona na lixeirinha que pendia do câmbio automático. Por um instante, imaginou as formigas que iriam surgir pra morder aquela bunda seca de “Rabelo”. Era uma cena engraçada. Se tivesse que apostar, ela colaria todo seu dinheiro que o rapaz estava achando outra coisa, daquilo tudo. Aposto como ele tá se sentindo. Coitado.

— Se soubesse eu comia. Desperdício — ele comentou.
— Você sabia que estão usando chuchu para fazer cerejas artificiais? Desde que descobri isso, meus drinks nunca mais foram os mesmos.
— Cereja? Era uma azeitona ali, não?
— Sim, mas eu queria mesmo era uma cereja. De verdade, sabe? São bem mais caras. Nada de chuchu com gosto de remédio.
— Ah… Você só esqueceu de me dizer onde vai ficar. Não sei onde você mora… Ainda. — Marcus comentou sem olhar para ela, demorando quase dois segundos para falar o “ainda¨.
— Segue a avenida e vira na penúltima saída. Moro na favela colorida.
— Ah, no Júlio, né?
— Alameda Benevento.
— Sei onde é. Vou só dar uma paradinha antes que tenho que entregar um parangolé. Dois minutinhos só — ele disse, olhando para Giovana de forma misteriosa, no que ela respondeu com um “Ok”, bocejando.

Ele reduziu e entrou num posto de gasolina. As luzes estavam acesas, mas não havia mais nenhum frentista. As portas da loja de conveniência trancadas, com uma corrente grossa. Lá dentro, um breu, tudo apagado. Estacionado em uma vaga reservada para cadeirantes, estava um C4 Pallas preto com os vidros fumê mais escuros que a noite sem lua.

Marcus parou próximo, dava uma vaga e meia de distância. Desligou o carro, puxou o cinto, respirou fundo e abriu a porta. Caminhou até o porta-malas, onde retirou uma valise de couro marrom escura.

— Fica aqui só um instante que já volto, é rápido. — comentou quando passou ao lado da janela que deixou aberta.

Giovana mexeu no rádio até encontrar uma música para humanos. Puxou o celular e notou diversas novas mensagens. Antes de ler, ouviu o primeiro estouro. Depois mais dois, três. Pareciam fogos de artifício.

O C4 Pallas arrancou cantando os pneus, deixando para trás o corpo de Marcus Rabelo estatelado no chão sujo. Marcas de bala cravejada em sua cabeça, o sangue escorrendo em um silêncio que sucedeu os estampidos. Tirando ela, as únicas testemunhas eram as luzes do posto. Elas zumbiam e piscavam, como se estivessem perplexas com a cena.

Giovana sentiu seu sangue congelar. Não podia desmaiar, não ali.

— Será que dá pra pegar a azeitona da lixeirinha do carro? — Pensou em voz alta.

Será que alguém viu os dois chegando? Será que alguma alma sebosa encanaria que saíram juntos naquela noite? Desceu do Audi, uma perna de cada vez, sem firmeza para se manter de pé. Olhou ao redor, apoiando-se no capô quente. Não acreditava que aquilo tudo estava acontecendo, justo com ela. Porra, ninguém merece, falou consigo mesma.

Quando se certificou de que não havia ninguém por perto, não pensou muito, apenas agiu. Era inteligente demais para se meter em roubadas. Puxou a jaqueta de couro com as duas mãos. A cabeça de Rabelo bateu seca no chão — não ia doer mais, que se lasque. O sangue formigava no seu corpo, um calafrio percorreu sua espinha e se espalhou. Ela sacudiu a peça de couro no ar, ela reluzia.

Agora sim, o caimento era perfeito. Se olhou no espelho do retrovisor. Porra, combinava muito com ela. Combinava pra ca-ra-lho.

Pegou a chave da mão mole do playboy, se benzeu um par de vezes e entrou no possante. Bateu a porta com tanta força que o Audi balançou.

— Foi mal, velho! — Giovana falou, com a cabeça esticada pra fora da janela do carro. Girou a chave de uma vez, o torque do motor fez o painel vibrar. O ronco mal esperou as luzes acenderem. Ela pisou no acelerador, o câmbio ainda no neutro.

Renato Russo cantava com aquela sua voz de corno manso no rádio. Um menino de playground revoltado com o país. Que piada.

Quinta-feira, vinte e três horas e onze minutos. Aquela noite não ia ter mesmo luar, mas quem acredita, sempre alcança.